Caffeine Intravenous

domingo, 3 de setembro de 2017

HÚMUS de Raúl Brandão

 Escrito em 1917 e é sem a menor sombra de dúvida um dos livros portugueses mais incisivos em termos de angústia existencial, atingindo níveis de uma introspeção densa e perturbadora. Intemporal e tão intenso na sua repetição poética que, ao final, vira cansativo. Deixa qualquer um também vivo-morto e aos surdos gritos em busca de um deus silenciosamente omnipotente.


"Este é o nosso sonho, esta é a nossa vida oculta, nossa vida de desespero, nosso sonho desgrenhado e imenso, doirado e imenso, amargo e imenso. Bem sei que isto dói. Bem sei que isto me custa a encontrar e a reconhecer nesta noite de luar e espanto. Bem sei que isto de ser homem é de grande responsabilidade. Tem prós e contras terríveis. Também que o que nos separa dos bichos não é a inteligência: a inteligência é o menos. O que nos separa dos bichos é o esforço dos vivos e dos mortos, o compromisso de aceitarmos a mentira como se fosse verdade. O que nos mantém neste inferno é a arquitectura artificial, é o facto de não nos vermos tal qual somos, baseados numa convenção que julgamos indestrutível. De não nos vermos a nós e de não os vermos a eles. Porque o homem por dentro é desconforme. É ele e todos os mortos. É uma sombra desmedida. Encerra em si a vastidão do universo. Agora somos fantasmas, somos afinal só fantasmas, e o que construímos não cabe entre as quatro paredes de matéria.
Ouve-los? Ouve-los? Passaram séculos e séculos no fundo da terra. Levaram séculos a compreender que foram iludidos. Redobraram séculos de desespero no interior das covas, até se compenetrarem de que todo o sacrifício foi inútil, de que toda a dor foi inútil. Ouve-los com dor e desespero?...

(...)

Ser só e livre e encontrar-me - ainda que desgraçado -, que alegria frenética! Agora é que tu mandas em mim, agora é que tu te impões - ser extraordinário e solitário que te obstinaste, que pouco a pouco te impuseste e afinal venceste! Sim, há em te obedecer uma alegria estranha, em calcar a vida uma alegria que se não parece com nenhuma outra, dolorosa e imensa, vital e imensa. Tu, reconheço-o, é que és o meu verdadeiro ser, e a tua voz a minha verdadeira voz. Não importa que para trás se ouçam gemidos - todos os fantasmas se dissolvem à luz da madrugada (...)

25 de Novembro

Não me compreendo nem compreendo os outros. Tudo me parece inútil, e agarro-me com desespero a um fio de vida, como um náufrago a um pedaço de tábua.
Nem sei o que é a vida. Chamo vida ao espanto. Chamo vida a esta saudade, a esta dor; chamo vida e morte a este cataclismo. É a imensidade e um nada que me absorve; é uma queda imensa e infinita, onde disponho de um único momento.
Talvez o mundo não exista, talvez tudo no mundo sejam só expressões da minha própria alma. Faço parte de uma coisa dolorosa, que totalmente desconheço, e que tem nervos ligados aos meus nervos, dor ligada à minha dor, consciência ligada à minha consciência.

Cheguei ao ponto, Morte, em que não me metes medo. Aceito-te. De ti vem vida. Absorve-me. Só tu agora me prendes os olhos e de ti não posso arrancá-los. És o único mistério que me interessa. Confio em ti. Cheguei ao ponto. Morte, eu de ti só espero. Só tu resolves e explicas. Só tu acalmas. Aceito-te mas intimo-te. Toma a forma que quiseres, mais negra, mais trágica, mais torpe - bem cheia é a noite e estás cheia de luzes: - recebo-te, mas como um passo a mais para outra iniciação, para outro assombro, e até para mais dor, se quiseres, porque da dor extraio mais beleza, mais vida e mais sonho. 

26 de Novembro

Está tudo errado. Só há um momento em que o compreendemos. Mas nesse momento já não podemos voltar para trás. É quando, fazendo ainda parte dos vivos, fazemos já parte dos mortos.

Não só a sensibilidade universal - a inteligência é exterior e universal. 

O universo é uma vibração. A vida é uma vibração da vibração.

A matéria também existe em estado de nebulosa - isto é, em estado de dor. 

Toda a teoria mecânica do universo é absurda. Daqui a alguns anos todos os sistemas serão ridículos - até o sistema planetário.

O sonho completo é o universo realizado."


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